Restos de Colecção: Café Gêlo

12 de abril de 2018

Café Gêlo

As origens do “Café Gêlo”, localizado na Praça D. Pedro IV (Rossio), em Lisboa remontam ao século XIX altura em que abria o “Botequim do Gonzaga” que daria origem ao “Café Freitas” e, por sua vez, ao “Café do Gêlo” em finais do mesmo século.

Quanto ao “Botequim do Gonzaga”, o livro “Estroinas e Estroinices” de Eduardo Noronha e publicado em 1922, relatava:

«Uma das figuras mais curiosas do Rocio de hontem era o Gonzaga, dono do botequim do seu nome. Ingénuo e tendo-se deixado colher nas engrenagens da politica, simples e de bom fundo, exploravam-n'o e enganavam-n'o. Rebolava o nedio tecido adiposo por aquelle mesmo esguio corredor onde ainda existe o café do "Gelo".
Entrava alli e tomava café e grogs, o que havia no estabelecimento, quanta gente lhe apetecia banquetear-se de graça. Para o conseguir bastava confessar-se partidário do dono da casa. Por mais protestos que lavrasse o Gibatanho, creado do botequim, as bebidas iam desaparecendo nas sêccas guelas da freguezia sem que o dinheiro apparecesse na gaveta do patrão.
Alguns amigos, os verdadeiros, aconselhavam-n'o a que jogasse menos o bilhar com os clientes, a quem nunca levava nada e, principalmente, a que palrasse menos, pois em falando, embevecia se com o som das próprias palavras e não pensava em mais nada. (...).
Estes e outros apólogos não abriam brecha nas arreigadas convicções do Gonzaga, o que o levou a trespassar o botequim ao Freitas, menos exaltado nas ideas partidarias e mais pratico no amealhar do custo dos respectivos liquidos. Frequentavam o Freitas com chronologica assiduidade, depois da Regeneração, Pinto Carneiro, polemista ferrenho e mais tarde general de divisão ; o acirrado miguelista Cabral Maneta; Costa Camarate, também general de divisão com o rodar dos annos ; Daniel da Silva, mathematico e lente da Escola Naval ; Mendes Leal, Rebello da Silva, Dr. Luiz da Costa Pereira, Luiz Augusto Palmeirim, Lopes de Mendonça, folhetinista ; o actor Rosa, pae ; José Vaz de Carvalho, Gonçalves Lobo, o aspirante Figueiredo, do 14; o Sant'Anna de Vasconcellos ; quatro desempenados mocetões capazes de jogar as cristas com os mais valentes. Conspirava-se no Freitas, como agora no "Gelo”, por toda a parte. A maioria dos lisboetas nunca deixa de conspirar.»

Dentro da elipse o lugar onde existiu o “Botequim do Gonzaga”, mais tarde “Café Freitas”. Gravura referente á revista das tropas pelo General Junot, após a tomada de Lisboa, em 30 de Novembro de 1807

Quanto ao "Café Freitas" no livro "Lisboa d'Outros Tempos”, de Pinto de Carvalho (Tinop), em 1899, era assim relembrado:

«O Freitas devia datar de 1845, epocha em que o duque de Cadaval terminou a construcção dos prédios, a que fora obrigado para regularisar o Rocio. O Periódico dos Pobres, do Porto, referia-se a essa terminação nas palavras seguintes:
«Estão-se demolindo com toda a actividade os barracões do Rocio; o novo theatro (o de D. Maria II) ó provável que se não abra para 29 de Outubro; as casas próximas já estão todas arrendadas, e com armazéns e lojas de bebidas.»

“Café Freitas”, na lista do “Guia do Viajante em Lisboa” de 1880

O “Café Freitas” deu lugar ao “Café do Gelo” pouco anos antes de 1899, já que neste mesmo livro Pinto de Carvalho refere:  «O Gonzaga do Rocio em numero 117 antigo, depois café Freitas (o moderno café do Gelo) ...»

Estudantes do “Lyceu Nacional de Lisboa” do Largo de São Domingos, em greve e á porta do “Café do Gelo” em 1907

Seria do “Café do Gelo” que sairiam, em 1 de Fevereiro de 1908, Alfredo Costa e Manuel Buíça, frequentadores deste estabelecimento, para o Terreiro do Paço para cometerem o atentado contra a família real, do qual resultaram as mortes do Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luís Filipe de Bragança.

                                                         Alfredo Costa                                       Manuel Buiça

          

«Alfredo Costa, caixeiro duma loja da Baixa, afaga no bolso a sua pistola Browning. Sabe que só a morte lhe dará bilhete para as páginas da História. À mesa do café do Gelo tenta dissuadir o amigo, Manuel Buiça, professor primário do Café Nacional: «você não, que tem filhos». Mas Buíça redigiu o testamento e comprou uma espingarda Winchester na loja fronteira à estação. (…) Buíça e Costa partem juntos para a Rua do Arsenal enquanto o vapor D. Luiz atraca ao Terreiro do Paço com a família Real a bordo.» in: “Lisboa Desaparecida (Vol IV) de Marina Tavares Dias.

Localização do “Café do Gelo”, dentro das elipses desenhadas nas fotos seguintes


25 de Julho de 1926

Por ocasião do funeral do Comandante João Belo em 4 de Janeiro de 1928

No livro “Memórias”, Raúl Brandão relatava em 11 de Fevereiro de 1908, acerca do “Café do Gelo”:

«Fui hoje ao café do Gelo ver o sitio onde o Buiça se reunia com os amigos. O café é já de si curioso, com duas salas d'aspecto completamente diverso, uma para o Rocio, d’aparato; outra, nas trazeiras, baixa, para os freguezes envergonhados, com portas para a rua do Principe. Era ali, n'aquella meza, do canto, á direita quem entra pelas trazeiras, que o professor se juntava com os outros e passavam horas a conversar baixinho.
- Eram muitos?
- As vezes doze ou quinze — diz o creado.
- E ficavam até tarde em grandes discussões...»

Em 1909 o "Café do Gelo", «ponto de reunião da mocidade escolar, que se entretem no falatorio academico, na bacharelice política e em outras nugas proprias dos verdes annos», passa para a posse da firma "Januario & Mateus Baptista, Lda.". Nos anos 20 e 30 do século XX, foi lugar de passagem de intelectuais e poetas como Fernando Pessoa ou Raul Leal.

1933

Salão de Bilhares do “Café do Gelo”

Em 1939, por morte do sócio Mateus Ferreira Baptista, já era propriedade de seus filhos, que para tal constituíram a “Empresa Café do Gêlo, Lda.”, e é neste ano que tem lugar a primeira grande reforma do "Café do Gêlo". Em 20 de Maio de 1939, dia da sua reabertura, o jornal "Diario de Lisbôa", a descreve do seguinte modo:

«Concluida ha três meses a parte da rua Primeiro de Dezembro e aberto agora o lado do Rossio, o "Café do Gelo", sem perder o seu aspecto de "café" familiar e pacato, converteu-se numa casa moderna, higienica e elegante, devido ao risco do arquitecto sr. Urbano de Castro. (...)
Toda a casa, desde as frontarias ás paredes interiores, é forrada a mármores preciosos da importante firma Mármores e Cantarias de Pero Pinheiro, Lda., onde a arte se alia ao bom gosto e higiene.
Digno de louvavel menção, igualmente é todo o trabalho em madeira e mobiliario do esplendido estabelecimento, desde a escada de caracol que conduz á sala de bilhar e jogos lícitos até ao guarda-vento do Rossio e ás mesas e cadeiras, de elegantissimo estilo. Pertencem, quer o risco, quer a realização, ao hábil artista de carpintaria e marcenaria J. de Sousa Camarinha, com sede no Casal de Santa Luzia, 9 e 9-A, á Estefania, que merece os mais francos parabens pela sua obra notavel.»

20 de Maio de 1939

Nos anos 50 do século XX, é alvo, de novo, uma profunda remodelação, a maior até então, tendo ficado no exterior com umas portas envidraçadas. O seu nome seria encurtado de “Café do Gelo”, para “Café Gelo” Restaurante, passando a ser frequentado por uma clientela constituída por empregados do comércio e jovens com pouco dinheiro.

Nova fachada do  “Café Gelo”

“Café Gelo” coma “Farmácia Estácio” à sua esquerda (na foto)

1971 Café Gelo

Foi por esta altura que começou aqui a reunir-se o chamado “Grupo do Gelo”, muitos deles vindos do “Café Herminius”, na Avenida Almirante Reis, embora tenham continuado a frequentar, em paralelo, o Café Royal, no Cais do Sodré. Deste mítico “Grupo do Gelo”, muito ligado ao surrealismo, faziam parte nomes como Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Ernesto Sampaio, António José Forte, Virgílio Martinho ou Herberto Helder, entre outros.
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Esta tertúlia durou até ao 1º de Maio de 1962. Neste dia verificaram-se violentos confrontos no Rossio entre a polícia de choque e os manifestantes. Alguns clientes do Gelo terão arremessado açucareiros de metal contra a polícia, tendo a “PIDE  Polícia Internacional de Defesa do Estado” proibido o proprietário do café de receber este grupo, sob pena de ser obrigado a fechar o café. O “Grupo do Gelo” acabou assim por se desfazer.

Quando em 2001, Fernando Jorge Gomes Ferreira da empresa “Januário & Mateus Baptista,Lda.” (também proprietários dos centenários “Café Nicola eCafé Luso”), comprou o espaço da hamburgeria “Abracadabra”, pouco sabia de toda esta história. «Soube do passado do café durante as negociações da compra do espaço. Fiquei tão impressionado que quis devolver essa história à cidade e resolvi, ali mesmo, recuperar o nome», contou ao “Diário de Notícias”.

 

 

Foi assim que, em 2003, o “Café Gelo” reabriu como pastelaria, mas com um mural ilustrado onde se conta o regicídio e as fotos de alguns poetas que voltariam a colocar o Café na História.

Fotos in:  Arquivo Municipal de Lisboa, Hemeroteca Municipal de Lisboa, Biblioteca Nacional Digital

2 comentários:

Anónimo disse...

Simplesmente delicioso a forma como narra a história desta cidade. Ainda me lembro do símbolo do "Café Gelo" em finais da década de 80 e de ter almoçado uma hambúrguer no "Abracadabra" que estava tão mal confeccionada que nunca mais lá voltei...

Victor Carocha disse...

Estando situado no coração de Lisboa é natural que o Café Gelo fosse um importante ponto de encontro como tão bem o autor deste blogue nos lembra.
Deixo aqui um outro exemplo.
No dia 12 de Março de 1905 o “Café do Gelo” foi usado como local de encontro por um grupo de jogadores do Sport Lisboa (primeiro nome do Sport Lisboa e Benfica). No dia anterior, Manuel Gourlade, então Capitão Geral (figura que podemos definir como o treinador da época), fez publicar um anúncio no "Diário Ilustrado" em que fazia essa nota aos seus jogadores. Desse local a comitiva Belenense deslocou-se depois em carro eléctrico até ao Lumiar, até ao Campo da Charneca onde o Sport Lisboa defrontou e venceu o competente Grupo do Gilman Football Club, proprietário do terreno de jogo.

Esse anúncio rezava assim:

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Realiza-se amanhã ao Campo da Charneca, o "match" de Football association entre o "Gilmann Football Club" e o "Grupo Sport Lisboa". O captain d'este, previne os seus jogadores que o ponto de reunião é o Café Gelo, Rocio, e que a partida para o dito campo será às 10 horas da manhã, em ponto, pelo electrico do Lumiar
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Enfim, uma curiosidade que achei interessante partilhar.

Excelente artigo. Obrigado.